O que há por trás de um olhar perdido e desesperançoso de uma criança? O juiz Vinicius Rangel Gomes, responsável pela Vara Única da Comarca de Mulungu, no interior do Ceará, buscou entender os anseios de uma criança e ajudou a traçar um novo rumo para sua história. O pré-adolescente de 10 anos, que buscava pelo amor e acolhimento de uma família, encontrou um lar por meio do processo de adoção em que o juiz Vinicius Rangel Gomes teve uma grande participação.

Em 2022, o juiz Vinicius Rangel Gomes teve contato com diversas crianças em um abrigo que acolhe jovens que sofreram qualquer tipo de violência por familiares, seja física ou psicológica. O magistrado ainda estava na turma de formação de novos juízes, junto com outros colegas, quando ouviu a história de uma criança de Mulungu, de quase 10 anos, que ainda não havia sido adotada e estava muito tempo nesse abrigo. Esse pré-adolescente havia passado por um processo de destituição da família biológica e também pela rejeição de sua família extensiva, ficando disponível para o processo de adoção que deveria ocorrer por meio de uma família substituta.

Segundo o magistrado, a história da criança lhe tocou. “No mesmo momento, comecei a conversar com a criança para entender melhor o seu caso e me prontifiquei desde então a ajudá-la, disse que estaria com ela nessa jornada, que íamos conseguir uma família para ela. Mas a criança parecia não acreditar em mim, pelo seu olhar. No dia mesmo, quando sai de lá, falei com a Vara de Mulungu para entender melhor a situação desse pré-adolescente e observei o quão complexo era o caso”, relatou o juiz.

Ainda segundo Vinícius Rangel, a criança passou por dois processos de rejeição, além dos maus-tratos que sofria com a família biológica. “Fiquei sabendo também, durante uma conversa com os servidores, que a criança havia mandado no natal uma carta para o Papai Noel pedindo de presente de natal uma família. Isso me tocou mais ainda, porque normalmente jovens pedem brinquedos e aquela criança queria apenas o amor de uma família, um lar para se sentir acolhida”, contou.

Desde o conhecimento do caso, o magistrado buscou meios possíveis para atender ao desejo da criança. Foram realizadas diversas buscas no Cadastro Nacional de Adoção e com o passar do tempo, a possibilidade de ser adotada ia reduzindo cada vez mais, considerando o aumento da idade. “Tivemos que correr contra o tempo. Além disso, também havia a necessidade de ter uma adequação entre o perfil do casal pretendente e o perfil da criança”, disse o magistrado.

Dentre as buscas, em dois momentos, duas famílias chegaram a visitar o abrigo para um primeiro contato, mas de forma rápida removeram a ideia da adoção, segundo o juiz Vinicius Rangel. “A técnica da unidade conversou comigo relatando que a criança havia falado “será possível que não há uma família que possa me acolher?. Isso fez com que eu me deslocasse até o abrigo novamente para conversar com a criança, levei inclusive meus filhos e minha esposa para conhecê-la, mostrei a ela que todos nós estávamos envolvidos e empenhados em encontrar um lar para ela”, relata o magistrado.

O juiz Vinicius Rangel comentou que, após intensas buscas e algumas tentativas no Cadastro Nacional de Adoção, já não havia mais famílias habilitadas no Estado do Ceará que combinasse com o perfil da criança. Porém, um casal que morava no outro extremo do país, preenchia os requisitos e se mostrou interessado em adotar. “A partir daí, uma nova página começou a ser escrita para a história dessa criança. Com muitas dificuldades, principalmente por conta da distância, começamos o primeiro contato, reuniões com toda a equipe (comigo, promotor de justiça e com o abrigo). Tinham alguns impasses porque o casal morava longe, tinha acima de 50 anos, algumas questões peculiares que podem atrapalhar o processo de adoção”, explicou Vinícius Rangel.

Nesse ínterim, foram realizadas muitas conversas e o casal se mantinha firme no desejo de adotar. Como houve a vontade clara e expressa de continuar o processo de adoção, a ideia era iniciar quanto antes o Estágio de Convivência com a criança. “Mas nesse momento encontramos o obstáculo que foi a localização do casal, que morava do outro lado do país e não tinha condições financeiras de vir para o Estado do Ceará durante o período de convivência”, ressaltou.

Observando aquela situação e com o objetivo de fazer com que o desejo da criança de ter uma família fosse realizado, o juiz Vinicius Rangel decidiu deprecar que Estágio de Convivência da criança fosse realizado onde o casal residia e não aqui no Ceará. “Nesse momento, foi conquistado uma passagem de avião de graça para a criança e houve toda uma logística para que ela chegasse segura no Estado que o casal residia. Fizemos também toda uma apuração e interlocução com os órgãos de proteção e com equipe técnica da Unidade de Acolhimento do Estado do Ceará, como também do outro estado que a criança ia passar a residir, tudo isso para que esse Estágio de Convivência desse certo e acontecesse sem intercorrências”, explicou.
Para que tudo ocorresse bem, o magistrado, inclusive, buscou o contato por grupo de WhatsApp nacional do juiz da Comarca do Estado que o casal reside e conseguiu uma vaga na Unidade de Acolhimento para a criança no outro Estado. O técnico da Unidade de Acolhimento do Ceará também foi acompanhar por alguns dias o pré-adolescente no Estágio de Convivência para conseguir fazer uma análise mais profunda e preliminar da família.

O magistrado reforçou que durante todo o processo foi pontuado com a criança que ela tinha voz ativa nesse ato de adoção. “Reforçamos para o jovem que ele deveria fazer o que tivesse vontade, o que o coração dele mandasse. Sempre falávamos que se durante o processo houvesse qualquer coisa que não tivesse o agradando, poderia nos avisar. Mas a criança sempre reiterava que tinha o desejo de continuar essa convivência e que queria tentar. Não poderíamos tirar dela essa possibilidade de estar com o casal, de ter esse momento de adaptação. Por isso, não medi esforços para que isso acontecesse”, disse.

Durante o processo, a criança ficou 45 dias convivendo com a família no outro Estado. Nesse período, foram dias de muitas conversas, videoconferência com a participação dos órgãos responsáveis, CRAS, conselho tutelar, dentre outros. Esse Estágio ocorreu por meio de cooperação jurídica com a Justiça da Infância e da Juventude do outro Estado. Eram produzidos relatórios diários e semanais durante todo o acompanhamento do caso. Ao final dos 45 dias, foi marcada a audiência que mudaria para sempre a vida daquela criança e daquele casal.

“Estávamos todos juntos, todas as pessoas que participaram desse processo durante a última audiência. Colhi os relatos dos técnicos e pude ver que os laços estavam bem estabelecidos. Era nítido pelo semblante da criança como ela estava se sentindo feliz com aquela família e vice-versa. Baseado em todo esse cenário, proferi a sentença de que a partir daquele momento os pretendentes eram de fato pais daquela criança. Foi muito emocionante e difícil segurar as lágrimas. Foi uma satisfação muito grande poder visualizar, através da minha ação, do sistema de justiça e de toda a equipe que participou, a mudança na vida de um pré-adolescente que passou por todo um processo de rejeição e agora teria a oportunidade de escrever um exitoso capítulo da sua história”.

O juiz conclui relatando que foi o caso mais prazeroso que participou, não somente pela peculiaridade, complexidade, mas sobretudo por realizar o sonho de uma criança de ter um lar e uma família para ser amada e cuidada. “É importante ressaltar que durante todo o Estágio de Convivência a gente reforçava que a adoção não é um ato de caridade, mas sim de amor de amor e responsabilidade. Independente das condições e particularidades de cada casal, quando você ama e quando tem a compreensão do que é amar uma criança, juntamente com o desejo de ser pai e mãe, é possível superar qualquer dificuldade”, concluiu o magistrado.