Discurso do desembargador Fernando Luiz Ximenes Rocha, decano do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE), proferido na solenidade de posse dos desembargadores Henrique Jorge Holanda Silveira e Marlúcia Araujo Bezerra, realizada no dia 13 de julho de 2018, no TJCE.

Saudação aos desembargadores Henrique Jorge Holanda Silveira E Marlúcia De Araújo Bezerra – Desembargador Fernando Luiz Ximenes Rocha

Confesso-me honrado e feliz com a missão a mim confiada pelo insigne Presidente Desembargador Francisco Gladyson Pontes de, neste fim de tarde e início de noite, fazer, em nome deste sodalício, a saudação aos seus novos integrantes, os Desembargadores Henrique Jorge Holanda Silveira e Marlúcia Araujo Bezerra. A minha alegria se alarga por tratar-se de dois magistrados que no exercício da judicatura têm pautado suas ações pela ética, pela persecução do interesse público, pelo respeito à Constituição e às leis, sempre na busca da realização da Justiça, da paz social, do respeito à dignidade da pessoa humana, da concretização dos direitos fundamentais e do fortalecimento das instituições democráticas. Quero, desde já, congratular-me com eles, seus familiares e amigos aqui presentes pelo merecido acesso à Segunda Instância do Poder Judiciário do Ceará.

O saudoso Cardeal Aloísio Lorscheider, certa vez, do alto de sua sabedoria, sentenciou:

“Todo ser humano é irrepetível. Todo ser humano escreve a sua história própria. Falhando o ser humano, outro não o substituirá. Se ninguém é, sob certo aspecto, insubstituível, todos somos, sob outros aspectos, irrepetíveis. Ou escrevemos a nossa história corretamente, ou deixaremos nela o nosso borrão, que nos envergonhará e, conosco, a própria humanidade”.

A esse propósito, Marlúcia Bezerra e Henrique Jorge, ao longo da caminhada na magistratura, escreveram uma história de vida sem jaça, que os engradece e orgulha a todos nós seus colegas, familiares e amigos, além de servir de exemplo para as gerações de hoje e do futuro. Por isso, este momento é de júbilo para a Sociedade e para o Judiciário cearenses.

Impende salientar outra grande coincidência na existência desses dois eminentes magistrados. É que ambos, na maior parte de suas trajetórias judicantes, atuaram na jurisdição criminal, na qual os juízes convivem mais de perto com as agruras da vida humana, suas misérias e aberrações, o que lhes exige uma maior sensibilidade e a consciência de que não é tarefa do julgador promover a vingança, porém a justiça e a paz social; não pode julgar com ódio, mas com misericórdia; não deve deixar-se contaminar pelas paixões que envolvem a vítima, o réu ou a sociedade, esta última, muitas vezes, a culpada maior dos crimes que estamos a presenciar em uma dimensão jamais imaginada. Eles trarão para esta Corte toda essa experiência acumulada, desempenhando suas funções na Segunda e na Terceira Câmaras Criminais, respectivamente.

Sem dúvida, contaremos com dois juízes sensíveis aos dramas da vida humana, verdadeiros realizadores do direito e da justiça, e não autômatos aplicadores da lei, proibidos de interpretá-la. Enfim, dois julgadores efetivamente vocacionados para o exercício do múnus de servir à sociedade, dirimindo conflitos e buscando plantar a semente da paz social.

Eles adentram este Tribunal em um instante extremamente preocupante vivenciado pela Nação brasileira, marcado por índices insuportáveis de corrupção tanto na esfera privada como na pública, o que tem levado a população a uma descrença generalizada nas instituições e em seus governantes. E o pior é que esse ceticismo se manifesta eivado de revolta e ódio, sentimentos atiçados em tempo real pelas redes sociais, sem permitir um átimo sequer de ponderação e de reflexão sobre a crise em que estamos imersos e acerca desta sociedade egoísta que edificamos, alicerçada em valores individuais e consumistas, ditados pela economia de mercado e pelas corporações, deixando à margem os verdadeiros interesses coletivos.

É nessa quadra difícil que a sociedade mais do que nunca carece de magistrados equilibrados, sensatos e inteiramente devotados ao cumprimento da Constituição da República, pois, ao arrepio desta, não há caminho para a saída da crise.

Desse modo, em hipótese alguma haveremos de compactuar com medidas que venham comprometer os direitos e garantias fundamentais conquistados depois de muita luta em prol de nossa redemocratização.

Com efeito, não há espaço para açodamento, mas para reflexão e temperança. É necessário, por conseguinte, que nós magistrados, mais do que qualquer outro agente político, exercitemos as virtudes da prudência e da moderação, porquanto foi a nós que o Constituinte reservou a missão de guarda da Constituição, de dizer o Direito e realizar a Justiça, visando alcançar a paz social. Portanto, é dever de todo Juiz cultivar a virtude da serenidade, pois, consoante ensina Norberto Bobbio:

“O sereno não guarda rancor, não é vingativo, não sente aversão por ninguém. Não continua a remoer as ofensas recebidas, a alimentar o ódio, a reabrir as feridas. Para ficar em paz consigo mesmo, deve estar antes de tudo em paz com os outros. Jamais é ele quem abre fogo, e se os outros abrem, não se deixa por ele queimar, mesmo quando não consegue apagá-lo. Atravessa o fogo sem se queimar, a tempestade dos sentimentos sem se alterar, mantendo os próprios critérios, a própria compostura, a própria disponibilidade”.

Essa serenidade não nos diminui nem nos torna fracos. Ao contrário, nos engrandece, nos fortalece e nos faz merecedores do respeito dos nossos jurisdicionados, ao mesmo tempo em que impede o comprometimento da independência política do Poder Judiciário, consubstanciada na liberdade de julgar e nos atributos de seu autogoverno, que só podem encontrar limites no sistema de freios e contrapesos ditados pelo imutável regime constitucional da separação dos Poderes. Isso significa que não somos insubordinados à lei ou imunes aos mecanismos de controle. Possuímos virtudes e defeitos, cometemos acertos e desacertos; somos falíveis como todo ser humano, porquanto a infalibilidade não compõe os atributos da humanidade. O que não se admite é a tentativa de intimidação, parta de onde partir.

Essa independência há de ser cultuada sem arrogância, uma garantia mais da sociedade do que da magistratura. Por isso, não se pode abrir mão desse predicamento, uma vez que sem juízes independentes não há sociedades livres, muito menos preservação dos direitos fundamentais e das franquias democráticas do cidadão. No exercício de sua função, não se admite possa o magistrado, idealista que é, sujeitar-se a qualquer tipo de pressão, seja interna ou externa, porquanto, como diz o Frei Beto, “o ideal não suporta a covardia”. Assim, deve o juiz obediência unicamente ao Texto Constitucional e à sua consciência. O medo é incompatível com sua atividade, pois onde ele existe não há liberdade, o que gera insegurança para os que formam o corpo social. Daí asseverar Eduardo Couture: “No dia em que o juiz tiver medo, nenhum cidadão poderá dormir tranquilo”.

Deveras, é preciso termos em mente que a relevante missão reservada ao magistrado exige dele muita humildade, serenidade e, acima de tudo, coragem, para manter sempre atual a célebre frase: “Há tribunais em Berlim”, o que significa, no dizer de Luigi Ferrajoli, que “tem de haver um juiz independente que possa vir para reparar as injustiças sofridas, para tutelar o indivíduo mesmo quando a maioria e até a totalidade dos outros se coligam contra ele; para absolver, no caso de falta de provas, mesmo quando a opinião pública exige a condenação, ou para condenar, havendo prova, quando a mesma opinião pública é favorável à absolvição”.

Nesses tempos estranhos que estamos a viver, no qual a segurança jurídica é posta em xeque ante a instabilidade das decisões judiciais e a atitude de setores autoritários, que se aproveitam da justa revolta e indignação do povo, para propor soluções que passam ao largo da Constituição brasileira, é de bom alvitre lembrar o discurso do inolvidável Ministro Aliomar Baleeiro proferido em pleno período de exceção – quando as garantias da magistratura encontravam-se suspensas pelo Ato Institucional nº 5 e três ilustres Ministros do Supremo Tribunal Federal haviam sido aposentados compulsoriamente – no qual faz um apelo para que os juízes, mesmo ameaçados pela ditadura militar, “continuem seu ofício sem medo e sem mancha”, alertando ainda que “ninguém se esqueça de que não há desenvolvimento continuo e durável fora do estado de direito, onde só mandam as leis e não os homens”.

Desculpem-me se num momento festivo como este, no qual celebramos a posse de dois novos componentes desta Corte de Justiça, eu não tenha falado de flores, mas é que, como disse Dostoievski, “para viver, só o Hosana não basta”. Senti-me, pois, obrigado a trazer uma mensagem de coragem para os recém-empossados, bem como para toda a magistratura, razão pela qual encerro minha breve oração, invocando as palavras de Guimarães Rosa, proferidas pela boca do jagunço Riobaldo: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Muito obrigado.
Fortaleza, 13 de julho de 2018.
Desembargador Fernando Luiz Ximenes Rocha