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Manhã de dezembro. Semana dedicada às audiências de conciliação, envolvendo idosos e portadores de necessidade especiais. Mandei apregoar as partes. Minutos depois, adentra a sala a requerente. Uma senhora de mais de setenta anos, aproximadamente. O traje denunciava a origem humilde. Uma camisola de chita cobria-lhe o corpo, levemente curvado e esquelético. Uma cânula nasal fixada à entrada das narinas permitia que o ar chegasse aos pulmões. O tubo de oxigênio foi deixado ao chão. A mulher acomodou-se no sofá. Arfava. Um moço, de pé, aparentemente filho da parte, cuidou de enrolar e segurar o restante da cânula.

Ausente a requerida. Uma instituição bancária. O que estaria postulando a autora? Pensei. O que levaria uma idosa, doente, que respirava com ajuda de aparelhos, a procurar a Justiça? A desafiar as escadarias, rampas e os labirintos mal projetados do Fórum? Pensei. Rapidamente li a inicial. Constatei que se tratava de uma mulher solteira e aposentada. Pleiteava a senhora o pagamento de cerca de dois mil reais, sob o fundamento de haver pago a maior à administradora de cartão. Uma bagatela para a ré, mas uma fábula para a autora. Era assistida pela Defensoria Pública, que também não compareceu.

Me deu uma vontade de pedir desculpas à senhora. Pela ausência da instituição financeira, da Defensoria Pública, da dificuldade de acesso aos portadores de necessidades especiais às salas de audiência. Desculpas pelo Brasil das desigualdades sociais. Dos corruptos e corruptores, estes e aqueles responsáveis pela falta de assistência aos menos favorecidos. Mas me calei. Nada pude fazer no momento. A não ser determinar que os autos me tornassem conclusos logo após o recesso para o impulso pertinente. O juiz pode muito. Mas não pode tudo.

O que mais me chamou a atenção na senhora? O fato de em nenhum momento ela queixar-se da vida, tampouco do menoscabo da poderosa instituição financeira, que sequer justificou sua ausência, apesar de regularmente intimada. Afinal, não era a senhora cliente da administradora? Usuária do cartão? No mínimo, o comparecimento da ré era medida que se impunha, mesmo que não desejasse transacionar. Mas o semblante da mulher era sereno. Não demonstrava o menor descontentamento pela saúde. Ou pela falta dela. Menos ainda pela ausência da ré. E olhe que dependia de um tubo de oxigênio para manter-se viva! Percebi que era uma pessoa feliz. Apenas por poder respirar, ainda que com ajuda de aparelhos. Bem por isso não senti pena da senhora, mas inveja. A chamada inveja branca, a inveja que faz bem ao invejoso e não faz mal ao invejado. Aquela senhora precisava apenas do ar que respirava para ser feliz. Respirar, ou seja, viver era o bastante para ser feliz. Pelo menos para aquela senhora.

Antes de sair da sala, a senhora apenas comentou, sem resmungar, que teria de pedir mais três reais emprestados para o transporte. A quantia seria para a passagem de ida e volta, visando a comparecer à próxima audiência. Quis oferecer o dinheiro para a mulher. Mas não consegui. Havia me desmontado diante da nobreza da idosa, sobretudo do seu amor à vida. Minha voz embargou e os olhos marejaram. “O que é bonito enche os olhos de lágrimas”, diria Adélia Prado. E pensar que tem pessoas que buscam, alucinadamente, a fama e a fortuna, assim como outros prazeres mundanos, para serem felizes. Mas não a encontram.

Aquela senhora me mostrou que a gente precisa de muito pouco para ser feliz. “Viver e não ter vergonha de ser feliz” (como fala a canção do Gonzaguinha), é o suficiente. Ainda que seja com o auxílio de aparelhos. Viver é a própria felicidade. A vida é bela e mais bela é a natureza que nos cerca. Fato que, no mais das vezes, nossos olhos são cegos. Que busquemos, então, como escreveu Saint-Exupéry (e pôs em prática a senhora), a felicidade com o coração.

Benedito Helder Afonso Ibiapina
Juiz