Entrevista publicada na edição de 25 de fevereiro, do jornal O Estado Ceará. 

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“O Estado é o maior cliente do Poder Judiciário, o que é inconcebível”

Em seu último ano como presidente da Associação Cearense de Magistrados (ACM), cargo em que deixará de exercer em janeiro de 2017, o juiz o Antônio Alves de Araújo comemora uma conquista antiga: vencer a defasagem de magistrados no Ceará. Ao assumir a presidência, em 2014, o Estado estava com uma carência de 107 juízes, agora, após a nomeação de 76 magistrados, ele afirma que o déficit ficará, no máximo, de 35 vagas. “Em matéria de juízes, o Estado do Ceará vai ficar relativamente confortável. Vai dar para amenizar bem”, garante.

Ao caderno Direito & Justiça, do jornal O Estado, o magistrado afirma que a maior dificuldade que enfrenta, atualmente, é na ordem orçamentária. Para Araújo, apesar de expressivo, o aumento nas custas judiciais para ingresso de ações na Justiça do Estado do Ceará é necessário. Segundo ele, a defasagem orçamentária do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE) é desde 2003, e não há outra saída.

O presidente da ACM, defende que as pessoas passem a acreditar nas audiências de mediações como forma de evitar o ingresso de novos processos e critica que o Estado é o maior responsável pelo o acúmulo de processos no Judiciário. Confira a entrevista.

Direito & Justiça: Dr. Antônio, quando o senhor assumiu, reclamou da precariedade da estrutura física de alguns fóruns pelo Estado. Passado dois anos, a reclamação é a mesma ou algo melhorou? Qual sua perspectiva?
Antônio Araújo: Quando nós assumimos, havia uma carência muito grande de pessoal, de juízes, de estrutura física e equipamento, de modo que tem se tornado difícil nosso caminhar para atingir metas almejadas. Ano retrasado, um grupo de 30 magistrados assumiu e, agora, mais 76 serão empossados. Em matéria de juízes, o Estado do Ceará vai ficar relativamente confortável. Quanto aos servidores e as outras necessidades, essa situação se perdura. Estamos trabalhando, temos conseguido alguma coisa, mas ainda com dificuldade.

Direito & Justiça: Mesmo com as nomeações de novos juízes que ocorreram agora, de quanto ainda é o déficit?
Antônio Araújo: Vamos ficar com um déficit de aproximadamente 30 unidades, 35, no máximo.

Direito & Justiça: Ainda continuará o acúmulo de mais de uma comarca?
Antônio Araújo: Tem juízes, no interior do Estado, que respondem por quatro ou cinco comarcas. Isso é uma perversidade. A demanda cresceu muito, nossos juízes trabalham na exaustão. A maioria vai à exaustão para dar conta das atividades. A sociedade cearense deve, ao final, agradecer penhoradamente pelo empenho desses juízes que, por mais de dois anos trabalharam, muitas vezes, sem ter a remuneração para tal, porque, aqui no Ceará, os magistrados não ganham gratificação por exercício acumulativo de função, mas ainda assim exercem essas atividades. Com a aquisição dos novos, esses que respondiam por mais de três comarcas, irão responder por duas, de qualquer maneira, já é muita coisa diante a situação em que se conviveu.

Direito & Justiça: O que o senhor poderia destacar de conquista nessa gestão?
Antônio Araújo: Em nosso primeiro ano de gestão, o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE) estava sob a presidência do desembargador Brígido, nosso relacionamento com o tribunal era muito difícil. Depois que a desembargadora Iracema do Vale assumiu, o clima mudou, passou a ser bom e cordial. Porém, as dificuldades que se impõem impedem que a gente, mesmo com esse correlacionamento, avance mais nas nossas conquistas.

Direito & Justiça: Quais as dificuldades?
Antônio Araújo: O Fórum de Fortaleza está com precárias condições de trabalho tanto o prédio como pessoal e de equipamentos. Há várias comarcas do interior na mesma situação. Estava prevista a construção de fóruns em algumas cidades do Estado, tem até cronograma mas, por falta de recursos, até o momento nada foi feito. A população do Ceará cresceu e, junto com ela, as demandas, mas o orçamento do tribunal está com uma base de 2003, ou seja, o percentual da receita do TJCE é a mesma de foi editada a primeira Lei de Diretriz Orçamentária. Estamos trabalhando com investimento zero, o que é péssimo. Como podemos evoluir se não temos recursos?

Direito & Justiça: Os cearenses iniciaram o ano com o aumento nas custas judiciais, o senhor como magistrado, o que acha desse aumento?
Antônio Araújo: As custas judiciais estavam bastante defasadas, há anos não havia um incremento nessa receita. Depois de muitas negociações com a OAB, a Defensoria Pública e o Poder Executivo, foi aprovada uma mensagem de lei, em julho do ano passado, em que traz esse incremento realmente significativo para o custeio do Poder Judiciário, entretanto, a própria OAB está questionando, hoje, essa lei, achando que algumas taxas de emolumentos estão elevadas, mas a salvação para o Poder Judiciário é a manutenção dessas custas.

Direito & Justiça: Esse aumento absurdo é realmente necessário?
Antônio Araújo: Esse aumento é significativo e necessário.

Direito & Justiça: Mas não vai dificultar o acesso à Justiça pela população?
Antônio Araújo: Acredito que não, pelo seguinte: temos que admitir que as pessoas que não têm condições de ingressar na Justiça utilizam a defensoria pública. Essa está funcionando plenamente, e se tem deficiência no interior do estado, em Fortaleza está mais ou menos suprida. Segundo, os percentuais em que houve aumento nas custas não foram nas bases, naquelas de menores valores.

Direito & Justiça: Então, irá refletir apenas para grandes ações?
Antônio Araújo: Exatamente. Nas grandes ações é que essas taxas, que antes eram cobradas por um único teto, passaram a ser escalonadas, e realmente tem valores, de certa forma, mais significativos.

Direito & Justiça: O sistema judiciário passou a adotar a audiência de custódia, que consiste na apresentação rápida do preso ao juiz . Qual sua opinião sobre esse tema, e avaliação, sobretudo, em relação à demanda e o quadro de juízes no Ceará?
Antônio Araújo: A audiência de custódia é um instituto inovador no Brasil, e o Ceará foi um dos pioneiros em sua implementação. A primeira aqui implantada foi em agosto do ano passado. Estamos marchando para sua otimização. Teve algumas dificuldades no início, até porque custódia cerca-se de vários outros atos.

É necessário que haja coleta de dados das pessoas, tem a questão de transporte de presos, que não depende do Poder Judiciário, fica a cargo da Secretaria de Justiça e/ou da Secretaria de Segurança Pública. Essas deficiências, realmente, houve no início. Está havendo mutirão para que se coloque em dia, e a perspectiva é que a partir do dia 1º de março, as audiências em Fortaleza estejam funcionando plenamente. O prédio do Governo do Estado está sendo reformado, próximo à Delegacia de Capturas, onde a audiência de custódia deverá funcionar, para facilitar o traslado do preso.

Essa logística vai se tornar muito mais fácil. Em relação ao interior, o tribunal formou uma comissão que tem tido todo o esforço em ver esse projeto funcionando plenamente, mas o que se sabe é que deve ser implantado de forma gradativa. Inicialmente, nas comarcas maiores. À medida que se tornar efetiva e eliminar todas as arestas, tiver funcionando plenamente, vai se avançando interior a fora.

Na verdade, não temos estrutura para montar audiências de custódia de um dia para outro, e não podemos também exigir um sacrifício a mais dos que fazem a Justiça – juízes, servidores, promotores e defensores. Acho que poucos estados do Brasil teriam condições.

Direito & Justiça: Muitos especialistas, estudiosos, reclamam que existem pessoas que buscam o judiciário com o objetivo de obter vantagem financeira sobre alguma causa. O senhor concorda? Há muitas ações desnecessárias?
Antônio Araújo: Costumo dizer que a Justiça é o último bastião em defesa da sociedade. Você pode comparar uma vara ou um tribunal a um hospital, em que você procura quando alguma doença está lhe afligindo. Da mesma maneira, você procura o fórum quando está com uma doença de natureza social, que é a mulher que vai atrás de pensão alimentícia quando foi abandonada pelo marido; é a mãe que vai atrás do filho porque praticou um assalto e foi preso; um homem que vai pedir providência para que se prenda o assassino de sua esposa, mas também é o local onde se pede providência sobre uma telefônica ou uma empresa concessionária de serviço público que não atendeu aquela prestação.

Como também é o local em que um grande comerciante vai exigir de alguém o cumprimento no contrato que foi firmado. Enfim, o Poder Judiciário é um local onde todas as pendências de ordem social são resolvidas. Agora, temos que ver também que no Brasil, existe a chamada cultura da judicialização, inclusive, há um trabalho hoje no sentido de que as pessoas passem a acreditar mais na mediação e, desta forma, não abarrotar tanto o judiciário. Outro grande cliente do Poder Judiciário é o próprio Estado, o que é inconcebível.

Como é que o Poder Judiciário é do Estado e tem demandas e demandas do Estado? Por que isso ocorre? Porque, na verdade, a gente sabe que o Estado não cumpre a sua parte naquilo que lhe é devido. Não cumpre sua parte no contrato celebrado. Esta é a razão também porque o judiciário é abarrotado de processos, porém, é de se imaginar que essa cultura da judicialização seja substituída pela cultura da conciliação e mediação.

Direito & Justiça: Mas o senhor percebe que no Ceará está havendo mais esse estímulo de mediação?
Antônio Araújo: Já há um incentivo muito forte, o Poder Judiciário tem incentivado muito isso. Mas, se é uma questão cultural, não dá para mudar de um dia para o outro. Há esse esforço, e a gente vai começar a ver os resultados daqui a uns três a quatro anos. À medida que os resultados positivos forem sendo demonstrados é que novas situações vão parar de ocorrer. Se você é muito arraigado à cultura da judicialização, ainda não confia em resolver uma questão através da mediação. É preciso que as mentes mais ousadas para lá se dirijam com suas pendências, que os resultados sejam satisfatórios, para que vá abrindo caminho, e outras pessoas possam para lá correr. Já houve um grande começo, e a tendência é se aperfeiçoar.

Direito & Justiça: Dr. Araújo, queria que o senhor comentasse sobre a questão da adoção. A gente percebe que o processo, hoje, ainda é muito demorado. Por que essa demora? Quais os entraves?
Antônio Araújo: Esses entraves geralmente são criados, não pelo Poder Judiciário, mas no ordenamento jurídico. Essa questão legislativa, que não compete ao judiciário mudar. Como se trata de uma questão muito importante, até porque adoção tem a pessoa ali por trás, uma criança, uma infância, uma adolescência, então o juiz jamais vai, por conta própria, suprimir certos procedimentos legislativos. Muitas vezes, ele tem a intenção, o desejo, de que a coisa se torne mais rápida, mas é impelido ou dificultado pelo próprios trâmites da lei e não tem muito o que fazer. Muitos processos, não só relacionados a adoção, poderiam ter uma solução mais rápida e a formalidade impede.

Direito & Justiça: Conforme a legislação, as crianças em abrigos, devem voltar à família antes de serem colocadas para adoção. O senhor concorda?
Antônio Araújo: A ordem natural é que a pessoa seja educada por seus familiares. Uma terceira família, o deslocamento de sua família para outra, é só quando fica provado que a família original não tem condições de cumprir aquela tarefa de dar educação.

Direito & Justiça: Depende do juiz em ter essa sensibilidade, principalmente se a criança vem de família cujos pais são usuários de drogas ou violentos?
Antônio Araújo: O juiz tem treinamento e discernimento para isso. Jamais vai permitir que uma criança seja criada por um casal completamente desajustado, porque aí ela não vai ser educada, digamos assim, e sim, deseducada.

Fonte: Jornal O Estado Ceará