“Através do plea bargaining a Promotoria de Justiça oferece ao réu a oportunidade de acordo, quase sempre diminuindo o peso da condenação que seria devida originalmente…”
O que você pensaria se alguém lhe dissesse que 90% dos casos criminais americanos são resolvidos por acordo entre a Promotoria e os réus, ficando apenas 10% para análise de mérito dos juízes e tribunais?
E se eu lhe dissesse que esse entendimento tem raízes econômicas e não jurídicas?
Falamos da delação premiada no sistema de Justiça norte-americano, ali conhecida por plea bargain ou plea guilty.
Fruto de um extremado senso de pragmatismo, o instituto floresceu de forma irresistível no final do século XIX em Tribunais de cidades como Nova York, New Haven, Boston, Cleveland, Chicago, Dallas, embora haja registro de sua utilização já na época da Guerra Civil, com a solução de cinqüenta por cento dos casos levados aos tribunais(1865) .
No atual estágio é impossível sua dissociação da estrutura de Justiça dos Estados Unidos.
Através do plea bargaining a Promotoria de Justiça oferece ao réu a oportunidade de acordo, quase sempre diminuindo o peso da condenação que seria devida originalmente, em troca da confissão pessoal ou da entrega dos nomes dos demais partícipes do ato criminoso e das circunstâncias em que o fato ocorreu.
Com isso economiza-se na investigação, na realização de diligências e perícias, na dedicação e energia devotadas pelos promotores e juízes ao processo, resultando num tempo menor para o encerramento de feitos que, do contrário, poderiam se estender por anos, com enorme custo ao erário público.
Há, ainda, reflexos diretos sobre os índices criminais, a afastar a impunidade de delitos cuja autoria não teria sido suficientemente fixada caso a confissão não tivesse ocorrido.
Apesar de tais vantagens é necessário que se diga que não existe rigidez constitucional com relação à delação premiada nos Estados Unidos. Esta se trata de um favor legal concedido pela Justiça Pública, com a necessária aceitação do magistrado ou tribunal responsável pelo caso, e estará sempre vinculado aos interesses da Promotoria e não aos do acusado, que apenas se beneficiará em caso de sua concessão .
Por outro lado, avaliando o réu que sua suas chances no julgamento da causa apontam para uma absolvição ou condenação em termos mais favoráveis do que aqueles oferecidos pela acusação no acordo de delação, poderá recusar-se à proposta e submeter-se ao julgamento perante o juízo da causa.
No extremo oposto da liberdade de acordo analisado acima se situa o princípio da indisponibilidade da ação, que vigora nos países cujo sistema criminal deita raízes no direito Romano (nec delict meneant impunita), entre eles o Brasil.
Para esses, o senso prático que serve de norte ao plea bargain fere o sentimento de justiça, sensação causada pela certeza arraigada no espírito de que não se abre mão da persecução penal, ou seja, do dever que tem o Estado de perseguir e punir aquele que pratica o ilícito, não importando quanto custe ou quanto dure o processo.
Retira-se, por intermédio do princípio da indisponibilidade da ação, a possibilidade dos órgãos responsáveis pela ação penal, nos casos de ação penal pública (art. 5º, 6º e 24 do CPP), de avaliarem a conveniência e a oportunidade de oferecer denúncia contra o suspeito do crime.
ou seja, verificada a realização da conduta típica e preenchidos os pressupostos legais para a propositura da ação, esta se impõe de forma inexorável, não podendo seu andamento ser obstado, salvo por exceções legais como a decadência e a prescrição do direito de ação.
Por aqui esta disponibilidade está restrita às ações privadas e às públicas dependentes de representação e requisição do Ministro da Justiça, não sendo correto afirmar que a criação de juizados especiais voltados às infrações de menor potencial ofensivo, em que se permite a transação, contradiz nossa tradição quanto à obrigatoriedade da ação, uma vez que o plea bargain alcança a ação mesmo depois da propositura desta, enquanto os arts. 74 e 76 da L. 9099/90 (Juizados Especiais), a prevêem como composição que antecede o oferecimento da peça inicial da acusação.
A reflexão feita neste artigo, dado o espaço exíguo em que se desenvolve, passou longe de abordar temas importantes ao instituto da delação premiada, mas, pessoalmente, inclino-me por sua aplicação pelo direito brasileiro, numa flexibilização do princípio da indisponibilidade do direito de ação, justificada pela necessidade de darmos vencimento ao imenso número de processos criminais que se acumulam e que diariamente prescrevem, a fomentar a impunidade e o aumento da violência.
Ricardo de Araújo Barreto
Juiz de Direito, Presidente da Associação Cearense de Magistrados (ACM) e mestrando em Direito Comparado pela Universidade de Samford (EUA).
Disponível em: http://www.cafeejustica.com.br/digital/cafe05.pdf (páginas 40 e 41)