Alívio e Cegueira

Após lançarem as bombas atômicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, os militares americanos Theodore Van Kirk e Charles Sweeney sentiram-se aliviados.

Com equipamentos de proteção e voando a uma altitude de 9.450 metros de altitude, os mensageiros do apocalipse transitavam em suas zonas de conforto, minimamente abaladas pelas ondas de energia liberada pelas explosões, enquanto milhares de pessoas eram instantaneamente incineradas.

Pensei: Como alguém, em circunstâncias tais, pode sentir alívio, diante dos caos e da morte? Sim, eles sentiram, afinal, para as Forças Aliadas, somente o uso das armas nucleares forçaria a rendição incondicional do já combalido Japão.

Trata-se de um triste e histórico exemplo dos abismos que separam os que se encontram em lados opostos, do intangível e imperceptível aos olhos, como um “mal branco”, na metáfora de José Saramago, em Ensaio sobre a Cegueira.

E quando o que nos separa vai além de nossas muralhas internas, nossos conteúdos latentes transmudam-se em sensações manifestas.

Tive essa experiência ao me deparar com a situação degradante em que se encontram mais de 200 adolescentes internados no Centro Educacional São Miguel, em Fortaleza, que visitei, no último dia 07. Um retrato do caos, da crueldade latente e do tratamento animalesco a que sujeito a adolescência encarcerada, no Estado do Ceará.

Parte da programação do Curso de Aperfeiçoamento em Direito da Infância e da Juventude, organizado pela Coordenadoria da Infancia e da Juventude do TJCE, em parceria com a Escola Superior da Magistratura do Estado, a visita ao CESM expôs um Estado insano, incapaz de cumprir regras mínimas, na custódia do menor infrator.

Enclausurados em dormitórios superlotados, fétidos e insalubres, sobra tempo aos “sócio-educandos” para riscar paredes e lançar sujeira nos corredores, comportamentos vistos como atos de rebeldia e de indisciplina, afinal, o essencial é invisível aos olhos (Antoine de Saint-Exupéry).

O efetivo cumprimento à Lei do Sinase – Lei nº 12.594/2012 – é uma quimera, como o é a recuperação de indivíduos sujeitos à toda sorte de violência. Usando as palavras do prestigioso colega Manuel Clístenes de Façanha e Gonçalves, Juiz Titular da 5ª Vara da Infância e da Juventude da Capital, o Estado retira desses adolescentes seus últimos resquícios de dignidade.

De fato, o Estado é talentoso na arte da transformação. De pequenos aprendizes à profissionais competentes; da violência latente à barbárie manifesta. Há um esgotamento, em definitivo, de todas as possibilidades de reinclusão social, quiçá a verdadeira inclusão.

Nesse estado de caos, a ressocialização, o propósito de oportunizar-lhes chances de ressignificação, de ajudá-los a reescrever a própria história são dissipados na atmoesfera de tortura e rompidos pelo tratamento desumano.

Ao perpertuar o ciclo de violencia, o Estado leva-os a caminhos sem volta, especialmente os que possuem potencial de mudança, demonstrando que o encarceramento pode trazer sentimentos de alívio, jamais a segurança que todos almejamos.

Verônica Margarida Costa de Moraes
Juíza de Direito Titular da Comarca de Mulungu