Juiz José Hercy Ponte de Alencar

Foi com um misto de esperança, mas também de apreensão, que, em meados de setembro do ano passado, firmei o entendimento de que envidaria esforços para compor uma chapa para disputar a eleição da Associação Cearense de Magistrados (ACM). A decisão de submeter meu nome ao escrutínio dos colegas associados foi muito mais motivada pelo incômodo das circunstâncias pelas quais passava a magistratura cearense, do que por motivos de interesse pessoal.

A ideia de concorrer à Presidência da ACM não era algo simples ou mesmo uma decisão sem maiores consequências, especialmente porque sempre considerei que nossa Associação deveria ter como principal razão de ser a mesma finalidade de toda e qualquer associação de classe: lutar pelos interesses dos associados.

Diante do desafio, busquei construir a chapa “Valorização e Independência”, tendo como norte para a escolha dos componentes o histórico profissional de cada um, especialmente no tocante ao exercício digno e responsável de suas atividades funcionais; mas, também, e não menos importante, o efetivo desejo por mudanças.

Partindo de tais critérios e escolhidos os componentes de nossa chapa, o resultado,  de amplo conhecimento, foi  a maior vitória já alcançada na história das eleições da ACM. Tivemos, numa eleição de elevado comparecimento, uma diferença de 144 (cento e quarenta e quatro) votos em relação a digna chapa concorrente. Tais fatos, penso, foram eloquentes, e atestavam o grau de insatisfação dos colegas magistrados e um desejo por mudanças em relação à atuação da ACM. Em última análise, ao que nos parece, a aclamação contundente das urnas apontou para o encerramento de um ciclo associativo.

O nítido anseio por mudanças nos impôs seguir por novos  caminhos. É certo que a quebra de paradigmas, na maior parte das vezes, não se faz sem percalços ou dissabores. Como contraponto, contudo, penso que estamos construindo um momento enriquecedor e, ao mesmo tempo, desafiador, a exigir abnegação e destemor, características que não tem faltado a todos os membros da atual Diretoria da Associação Cearense de Magistrados.

Assim é que, na incessante busca pela valorização dos magistrados no Ceará, a ACM vem tentando fortalecer e aprimorar os canais de diálogo com a Presidência do TJCE, mas também tem se valido, como dever institucional seu, das vias recursais administrativas possíveis – Órgão Especial do TJCE e Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – quando do indeferimento de seus pleitos.
O certo é que, passado menos de um ano de mandato da atual gestão da ACM, resultados positivos foram alcançados, não obstante tenham sido consideráveis as dificuldades e os desafios, como já se ressaltou. A propósito, é importante reconhecer nesse momento que  a magistratura cearense tem demonstrado grande apoio ao nosso trabalho, reconhecendo todo o esforço até então empreendido, o que se traduz num reconhecido clima de esperança e de união de toda a classe.

Alguns frutos já foram alcançados. Ocorreram melhorias significativas nos valores percebidos a título de auxílio saúde,  gratificação de acervo e de gratificação por acúmulo de função. Foi editado ato normativo que permite o exercício de atividade jurisdicional mediante teletrabalho para juízas até que o filho complete a idade de 2 anos, com termo inicial a partir do fim da Licença Gestante.

Outras melhorias se deram por conta de procedimentos junto ao CNJ. Foi alterado ato normativo a fim de que não mais se proceda a desconto de parcela correspondente ao auxílio alimentação do valor das diárias pagas aos magistrados em serviços excepcionais (plantão); foi alterado ato normativo, fixando-se em até 6 parcelas mensais sucessivas o pagamento do valor correspondente a férias não gozadas por magistrado quando de sua aposentadoria (anteriormente o pagamento podia ser feito em até 60 parcelas); foi imposta a obrigação de propiciar sistema de segurança adequado aos magistrados que exercem atividade jurisdicional no Núcleo de Custódia de Ibicuitinga.

Saliente-se que recentemente o CNJ editou Resolução através da qual se reforça a necessidade de simetria entre as carreiras da Magistratura e do Ministério Público, o que no âmbito do Estado do Ceará descortina uma série de objetivos a serem alcançados em prol da valorização da magistratura cearense.

No que diz respeito à pertinência dos objetivos referentes às condições de trabalho, bem como daqueles  voltados para o aspecto remuneratório, esses últimos que considero de natureza conjuntural, entendo que se deve ressaltar dois temas, de natureza estrutural, e que são primordiais no processo de valorização. São eles: a questão orçamentária do TJCE e a eleição também por juízes de primeiro grau para a escolha da direção do TJCE.

Relembramos que os dois tópicos acima destacados constaram no rol de propostas de nossa campanha. A questão da eleição, inclusive, foi proposta de campanha das duas chapas associativas que concorreram na última eleição, o que me parece ser reflexo do desejo da grande maioria dos magistrados no Ceará.

Relativamente à questão orçamentária, não encontra justificativa razoável se manter o TJCE no último lugar do Brasil, segundo o Relatório Justiça em Números do CNJ (2023), quanto ao índice de despesas por habitante (com ou sem custo com inativos). Tal índice, pela ótica orçamentária, – considerando que só há despesa com a respectiva dotação (receita) – indica que o TJCE tem também a menor receita orçamentária por habitante do Brasil.

Trata-se, a nosso sentir, de um dado alarmante, e que é responsável pela inadequada estrutura de trabalho dos magistrados, com repercussão também em questões de natureza remuneratória. Não é razoável, por exemplo, que o orçamento do TJCE, em termos absolutos, seja inferior ao do Tribunal de Justiça do Maranhão, de idêntico porte, com o diferencial de que o Estado do Ceará tem maior potencialidade econômica, como é de todos sabido.

Forçoso dizer que tal quadro, que se nos afigura injustificável, se deve ao fato de que não figurou como prioridade de várias gestões a  obtenção de um orçamento razoável para o Judiciário Cearense, tendo mesmo se chegado ao ponto de divulgar como mérito de gestão esse índice, que coloca o TJCE como “ponto fora da curva”, sob quaisquer óticas. Nesse passo,  é de se perguntar: qual seria a finalidade pública  de tal situação e a quem interessa manter o Poder Judiciário do Estado do Estado do Ceará com um orçamento evidentemente incompatível com suas funções institucionais?

Dada a repercussão dessa circunstância e de seus reflexos no dia a dia dos magistrados, trouxemos tal questão a debate, de modo franco, e de forma técnica, apresentando, como a Associação tem feito, números comparativos, divulgando a realidade, especialmente àqueles que sentem o efeito da inadequação orçamentária.  Pensamos que longe de constituir ingerência ou invasão na esfera de atribuição do gestor, trazer tal questão à baila releva uma missão associativa da máxima importância. Não custa ressaltar que um orçamento deficiente repercute na qualidade da prestação jurisdicional, com efeitos sociais negativos e evidentes.

Quanto à escolha dos gestores do Tribunal mediante eleição direta por todos os magistrados, sem a atual restrição aos magistrados que atuam no segundo grau de jurisdição, trata-se de uma postulação com evidente teor democrático, princípio maior que norteia o próprio Estado de Direito. Nesse particular, é preciso desconstruir com veemência a equivocada  concepção de que a eleição direta, em tais moldes, iria “politizar” os tribunais, principal argumento levantado em desfavor da questão.

Na realidade, as eleições com a participação de  todos os magistrados conduz, ao contrário, à democratização dos Tribunais, face ao reconhecimento, ainda que tardio, de que são Órgãos do Poder Judiciário, no dizer da Constituição da República Federativa do Brasil, os juízes e os Tribunais, e não apenas os membros do segundo grau de jurisdição.

Nesse viés é que se mostra necessário realmente politizar o Poder Judiciário, na acepção correta e ampla dessa palavra que  diz respeito exatamente à importância ao pensamento e à ação política voltada aos interesses dos cidadãos, única razão de ser do Poder Público. No caso da Justiça, o princípio democrático se realiza mediante a adoção de políticas públicas promovidas pelo Judiciário para a melhoria de seus serviços prestados aos cidadãos. Daí a necessidade de dar voz e representação aos membros que atuam no primeiro grau de jurisdição, primeira porta de acesso dos cidadãos à Justiça,  e por onde, na maioria das vezes, ali encontram a pacificação definitiva de seus conflitos.

Não podemos olvidar que o Poder Judiciário do Estado do Ceará tem a missão de distribuir Justiça aos cidadãos em todo o  Estado  e essa missão se perfaz pelas mãos de todos os juízes e juízas presentes nas mais diversas comarcas do Ceará, em suas distintas peculiaridades. A Justiça não se realiza  apenas pelo trabalho de magistrados presentes nas instalações do Tribunal. Assim, a representação democrática do Judiciário deveria  refletir a plural realidade enfrentada e efetivamente conhecida por todos os membros que atuam  no Poder Judiciário, de primeiro e segundo graus. Só assim alcançaremos a verdadeira democracia do Judiciário.

Por fim, relembrando meu discurso de posse, reafirmo que as velas ainda estão “paridas de sonhos, aladas de esperanças”. E que “o ideal está ao leme”. No entanto, agora, diferentemente do dia da posse, o desconhecido não se desata à frente (assim espero). Decorridos já quase um terço do período de mandato, tenho a firme esperança de que há mais navegador do que Velho do Restelo na Magistratura Cearense… Como disse o genial poeta português Fernando Pessoa:

 

“Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena
[…]
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor”.