Abaixo, segue o discurso de posse do desembargador Heráclito Vieira, no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE), no dia 27 de agosto.

 

Minhas Senhoras e meus senhores.

Antes de mais nada, gostaria de agradecer, emocionado, às palavras elogiosas do Desembargador Antônio Abelardo Benevides Moraes. Sei que amizade e bem querer não são passíveis de agradecimento, são bens inestimáveis. A peculiaridade, Desembargador Abelardo, é que essa amizade surgiu, não devido a qualquer empatia ou afinidade de caráter meramente pessoal, mas a partir do interesse comum em contribuir com a defesa da instituição da qual fazemos parte: inicialmente através do movimento associativo, ainda na década de noventa, quando nos conhecemos pessoalmente. Depois, durante quatro anos de trabalho árduo e precursor na Corregedoria Geral de Justiça, entre 2001 e 2004 e, por último, no Tribunal Regional Eleitoral.

Assim, em diferentes momentos e ocasiões, fui e sou testemunha de seu trabalho incansável em defesa do Judiciário, de combate às deformações e desvios de conduta no seio deste Poder e do seu compromisso com a instituição, principalmente nos momentos de dificuldade, que são muitos. Ao senhor, minha infindável admiração e gratidão.

É forçoso, neste momento, deixar de fazer uma retrospectiva da longa caminhada que se iniciou em 5 de abril de 1993, quando assumi o cargo de juiz substituto da Comarca de Mulungu e passei a lidar, diariamente, com a realidade do Poder Judiciário do Estado do Ceará.

O caminho percorrido foi extenso e muito rico, mas não me autoriza a transformar esta tribuna num muro de lamentações e passar a desfiar um rosário de agruras enfrentadas no exercício da profissão, recheado de dificuldades pela falta de estrutura das comarcas, varas e juizados por onde passei.

Poderia optar em falar para os senhores da carência de pessoal, acumulação excessiva de respondências, auxílios e plantões judiciários, sem a respectiva remuneração.

Teria motivos para tecer lamúrias a respeito das excessivas críticas de que o Poder Judiciário é alvo, que atinge a todos nós, magistrados e servidores, indistintamente.

Para mim, no entanto, não foi assim que essa história se passou.

Os 22 anos de atuação como magistrado, ainda que tendo compartilhado, com os companheiros de profissão, das dificuldades anteriormente descritas, significaram oportunidade única de aprendizagem, crescimento e experiência de vida.

Tive a chance de exercer praticamente toda a minha vida profissional em um Juizado Especial de Fortaleza, cuja circunscrição abarca um conjunto de bairros distante das áreas mais privilegiadas da capital. O universo próprio dos juizados especiais, marcado por um procedimento caracterizado pela informalidade, partes litigando, no mais das vezes, sem o auxílio de um advogado, portanto, em contato direto com o julgador, somado à localização periférica do 1º Juizado Especial Civil e Criminal de Fortaleza, deram-me a noção dos obstáculos, quase que intransponíveis, colocados à frente da maioria de nosso povo.

Assim, as dificuldades próprias de nossa carreira, se comparadas ao abandono que atinge parcela considerável da população que se socorre do Poder Judiciário na tentativa de garantir seus direitos mais básicos, negados pelo Estado, em suas várias esferas, e vilipendiados por uma minoria favorecida com o poder econômico, tornam-se insignificantes.

Essa constatação não me leva ao conformismo quanto às reinvindicações empreendidas por nossa categoria, liderada pela Associação Cearense de Magistrados, com o objetivo de alcançar melhorias em nossas condições de trabalho, remuneração, direitos e garantias constitucionais.

Estas constatações devem nos servir de fio condutor para aproximar a magistratura da nossa realidade social, marcada por graves distorções socioeconômicas que geram uma abissal desigualdade. São imprescindíveis para tenhamos a perfeita noção sobre as condições daqueles a quem prestamos nossos serviços e a dimensão concreta de nossos problemas enquanto grupo de servidores públicos contemplados com faixas salariais das mais elevadas.

Rejeito, veementemente, a noção formada a partir do senso comum e, que reverbera até mesmo no seio de nossa família e círculo de amizades, de que nós, magistrados, somos privilegiados por recebermos salários elevados ou que sejamos aquinhoados com benesses que não se estendem à maioria das carreiras do serviço público. É a ideia equivocada de que “juiz ganha muito para trabalhar pouco”!

A função de distribuir justiça, de reparar as lesões aos direitos dos cidadãos, de buscar corrigir as distorções, tratando a todos de acordo com suas singularidades, numa sociedade profundamente desigual, na qual 1 por cento da população mundial possui mais riqueza que os outros 99 por cento e, no Brasil, aonde a concentração é ainda maior, somente 0,9 por cento da população detém entre 59 e 68 por cento de todas riquezas, cabe ao Poder Judiciário um papel fundamental na proteção dos direitos de quem sofre as consequências desta divisão cruel.

Portanto, para que o magistrado possa exercer sua atividade com independência e imparcialidade, livre dos achaques e seduções do poder econômico, há necessidade de uma remuneração digna, proporcional à importância da função jurisdicional. Independência e imparcialidade, é necessário que se afirme, não se confundem com neutralidade, pois como diz Max Weber, “neutro é quem já se decidiu pelo mais forte”.

É certo que existem profissionais que correspondem à imagem distorcida que boa parte da sociedade faz de nós. Desídia, irresponsabilidade, ausência de compromisso com a instituição, são desvios de conduta que fazem parte do nosso meio. Mas a magistratura não detém o monopólio dos pecados e, pode-se afirmar sem temor de equívoco, que as falhas são comuns a todas as instituições.

Resta empreender esforço incessante para aprimorar os instrumentos de controle administrativo e disciplinar, internos e externos, combatendo o espírito de corpo no seio do Judiciário e punindo exemplarmente o magistrado incompetente, descomprometido ou corrupto.

Como alento, percebo que, depois de duas décadas, os ventos da mudança sopraram na Justiça Brasileira. Talvez as transformações não tenham ocorrido na velocidade e profundidade desejadas e necessárias para converter o Poder Judiciário no guardião da Democracia Social concebida na Constituição Federal de 1988.

Em grande medida, o Judiciário permanece um poder hermético, encastelado, autocrático, distante da sociedade ou, de parte significativa dela.

Mas as mudanças vêm ocorrendo e um marco histórico, a meu ver, foi a criação do Conselho Nacional de Justiça e sua instalação no ano de 2005.

Ainda que se possa apontar eventuais excessos e equívocos cometidos pelo órgão incumbido pela Constituição Federal de zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, é inegável o progresso colossal que representou a criação do CNJ.

Qualquer cidadão, sem a necessidade do auxílio de um advogado, pode acionar o Conselho para fazer reclamações contra membros ou órgãos do Judiciário, por desvio de conduta, abuso de poder, tráfico de influência, corrupção, ou infrações disciplinares e administrativas de menor vulto.

Assim, estabeleceu-se um canal direto de comunicação entre o cidadão e um órgão externo que, por não se submeter à hierarquia administrativa do Poder Judiciário, não se contamina, via de regra, pelo corporativismo próprio da instituição.

Para que se tenha noção da importância do CNJ, basta mencionar duas de suas primeiras decisões de âmbito e repercussão nacional, tomadas no ano de 2005, pouco tempo depois de sua instalação, uma delas, provavelmente, condição de possibilidade para que eu pudesse estar aqui neste exato instante:

No dia 30 de agosto de 2005, o Conselho Nacional de Justiça decidiu, nos autos do Pedido de Providência n. 08/2005, requerido pela Associação dos Magistrados Brasileiros, que a promoção por merecimento de juízes deveria seguir critérios objetivos, sendo decidida por voto aberto, fundamentado e realizada em sessão pública, sepultando a prática antirrepublicana, nefasta e nebulosa, das promoções por voto secreto e sem fundamentação.

Menos de um mês depois, em mais uma sessão histórica, no dia 27 de setembro, o Conselho Nacional de Justiça proibiu a prática secular do nepotismo através da Resolução nº 7 de 2005, que determinou a exoneração, em 90 dias, no âmbito de todos os tribunais, de cônjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colaterais ou por afinidade, até terceiro grau, de juízes ou de servidores de direção e assessoramento.

Etapa relevante a ser vencida no futuro, que não deve ser considerada como a panaceia para todos os males que acometem o Judiciário, mas que importa em adequar a estrutura da Justiça aos princípios constitucionais aos quais ela deveria estar submetida, diz respeito à participação direta da magistratura de 1º Grau na eleição dos cargos de direção dos Tribunais, como forma de ampliação da DEMOCRACIA INTERNA DO PODER.

José de Albuquerque Rocha, em sua obra “Estudos Sobre o Poder Judiciário”, publicada em 1995, na qual assinalou, dez anos antes da criação do CNJ, a necessidade de um órgão de controle externo para romper com o espírito de corpo ínsito ao Judiciário, concluiu que, “para o problema da burocratização do Judiciário só há uma solução: democratizar o exercício do poder através da participação de todas as categorias de magistrados, pelo menos na gestão administrativa da instituição”.

A eleição dos órgãos de direção do Poder Judiciário, com a participação de toda a magistratura, longe de significar uma resposta definitiva para as inúmeras questões que nos afligem, representa, ao menos, a extensão do princípio democrático a uma instituição que é responsável, em última instância, pela defesa do Estado Democrático de Direito, mas, de forma contraditória, internamente, não se vale do mesmo instrumento para o exercício do poder.

Tomado por tais reflexões acerca da nossa Justiça é que assumo esta missão em minha vida profissional, reafirmando, como o fiz no início desta solenidade, o compromisso firmado, pela primeira vez, no dia 5 de abril de 1993.

Encaro o momento, a despeito da alegria de compartilhá-lo com minha família, amigos e todas as pessoas queridas aqui presentes, com a mesma seriedade com que me pautei nesses 22 anos de exercício da magistratura. Jamais como jactância pessoal pela aquisição de um título que, em si mesmo, nada muda na minha forma e no meu propósito de bem exercer a magistratura.

Gostaria, caminhando para o final das minhas palavras, de prestar homenagem e agradecer

Aos desembargadores que compõem este tribunal, por me avaliarem merecedor e digno de tomar assento aos seus lados.

Ao desembargador Clécio de Aguiar Magalhães, magistrado íntegro e respeitado, a quem tenho a honra de substituir neste órgão colegiado, pelos 39 anos de serviços prestados ao Poder Judiciário do Ceará.

Aos meus pais Audísio e Tereza que, por seus exemplos de vida, seja nos atos mais simples do cotidiano, seja no relacionamento com todas as pessoas, souberam arrebatar os filhos para os caminhos da ética e da solidariedade.

À minha amiga de nascença, pessoa iluminada e que irradia sua luz para todos os que têm a sorte de estar a seu lado durante esta grande aventura que é viver, minha irmã Liduina.

À minha mulher Tatiane, minha crítica mais severa e minha fã mais ardorosa, pessoa com quem aprendo todos os dias, as maravilhas e as contradições de um amor verdadeiro.

Aos meus filhos Gabriel, Davi, Júlia e João, meu Norte, meu Sul, meu Leste e meu Oeste, todos os meus pontos de partida e minha única linha de chegada.

Ao meu tio, José de Albuquerque Rocha, cuja conduta e ensinamentos me serviram de parâmetro e inspiração na vida profissional e, para quem, este momento, se vivo estivesse, significaria o fechamento de um ciclo, que permaneceu aberto desde o ano de 1976 (quando aposentou-se voluntária e precocemente da magistratura).

Aos meus companheiros de trabalho do 1º Juizado Especial Cível e Criminal de Fortaleza, ao qual cheguei quando ainda era chamado de Juizado de Pequenas Causas do Antônio Bezerra, e a quem devo qualquer tipo de sucesso que porventura tenha obtido, ao longo desta caminhada.

Encerro minhas palavras, reiterando o meu compromisso pessoal, firmado desde a minha juventude, com a construção de uma sociedade justa, igualitária, solidária e, na qual, o exercício de uma verdadeira cidadania, passa por um Judiciário transparente, altivo, capaz de olhar para dentro de si mesmo e realizar os seus ajustes de forma a contribuir para dias melhores numa sociedade em que o ser humano, em sua grande maioria, somente é chamado de cidadão por possuir um título de eleitor, por que mal sabe ler, não ganha o suficiente para alimentar dignamente a família, não tem carteira assinada, não tem escola de qualidade, falta-lhe acesso à saúde básica e, quase sempre, só recebe atenção da Justiça quando é colocado no banco dos réus.

Este é o meu compromisso.

Muito obrigado.