Leia a seguir entrevista do magistrado Edinaldo César Santos Júnior na Revista da AMB e republicada a seguir:

20150706083845_559a68c57f1b5 (1)O juiz Edinaldo César Santos Junior lembra, com exatidão, como iniciou a carreira voltada aos direitos humanos: pouco após o término da faculdade de Direito, em 1998, foi “convocado” por um primo a defendê-lo por injúria racista. A causa resultou na primeira sentença sobre este tipo de crime na Bahia e uma das primeiras emitidas pela Justiça no Brasil.

Esse foi um dos muitos casos em que o magistrado atuou na área de direitos humanos. O mais triste episódio aconteceu durante sua atuação como defensor público na Bahia. Um homem, porteiro de uma escola, casado, pai, acabou preso e, em razão de tortura, perdeu o órgão genital. Edinaldo lutou para que a ação de indenização contra o Estado não prescrevesse. Por essa e outras histórias, recebeu o Prêmio de Direitos Humanos em 2009 das mãos do então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.

Juiz de Sergipe, foi o idealizador do Projeto “Cidadania é Legal”, disseminando o conceito de cidadania a adolescentes e crianças das comunidades em que atuava como magistrado. Na entrevista concedida ao AMB Informa, Edinaldo falou sobre sua trajetória profissional e a atuação na área dos direitos humanos.

Edinaldo é graduado em Direito pela Universidade Católica de Salvador (UCSAL), especialista em Direitos Humanos pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e mestre em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo (USP), com o tema “Sistema Interamericano dos Direitos Humanos: a garantia do juiz independente, imparcial e pré-constituído e seus reflexos no direito brasileiro.” Atuou como advogado, defensor público na Bahia e, desde 2005, é juiz em Sergipe. Foi o 1º estagiário brasileiro perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Atualmente, além de integrante da Comissão de Direitos Humanos da AMB, atua no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), órgão ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, e está engajado na criação do Comitê Estadual de Combate à Tortura em Sergipe. É juiz titular da 2ª Vara Cível da Comarca de Lagarto (SE).

Conte-nos um pouco sobre sua trajetória profissional como defensor dos direitos humanos. Como começou a atuar na área?
Comecei a atuar na área logo após o término da faculdade de Direito. Menos de um mês depois da formatura, fui “convocado” por um primo a defendê-lo como vítima de injúria racista. Isso era setembro de 1998. Com pouco mais de um ano da publicação da Lei nº 9.459, que alterava o Código Penal e qualificava a injúria, a defesa dos grupos vulneráveis passou a fazer parte da minha história. Daquele episódio, saímos vitoriosos dois anos mais tarde, com a primeira sentença procedente em injúria racista na Bahia e uma das primeiras no Brasil.
Em 2000, a partir de uma iniciativa do Ministério Público da Bahia e da Universidade do Estado da Bahia, fui um dos coordenadores de um curso pioneiro de direitos humanos no Nordeste, cuja interdisciplinaridade era a tônica. A partir dessa experiência, fui convidado a estagiar na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San José da Costa Rica, tendo sido o primeiro estagiário brasileiro perante esta Corte, sendo o revisor da tradução do Regulamento da Corte para o português.
Antes ainda de ingressar na magistratura, na Defensoria Pública da Bahia, assumi a coordenação do Núcleo de Direitos Humanos, local em que atuávamos na defesa de diversos grupos vulneráveis. Foram anos muito importantes para o crescimento enquanto ser humano e como defensor dos direitos humanos. O contato com o sofrimento humano forja-nos na capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, condição indispensável a um julgador.
Em 2005, enfim, ingressei na magistratura sergipana. Mas foi em 2008, já como juiz titular, que retomei minha trajetória na atuação dos direitos humanos, como coordenador de Direitos Humanos pela Associação dos Magistrados Sergipanos (Amase), realizando seminários, especialmente voltados à infância e juventude e ao combate à tortura.

Qual trabalho seu que considera o mais significativo na área de direitos humanos?
Cada trabalho teve a sua importância. Em cada momento de minha vida, cumpri missões. Muitas, com certeza, ainda virão. Entretanto, o que posso dizer é que o juiz nacional é o primeiro juiz de direitos humanos. E ser magistrado para mim é esse desafio significativo, ímpar e permanente: ser um juiz humanista todos os dias, a despeito dos reveses e das dores que isso possa causar.
O senhor recebeu um Prêmio de Direitos Humanos em 2009. O que significou isso para sua trajetória profissional?
É uma láurea que muitos recebem no fim de toda uma vida; alguns post mortem. Para mim, esse prêmio significou além de um reconhecimento a um trabalho desenvolvido, também um estímulo a permanecer firme nas minhas convicções e no desejo de continuar trabalhando em prol das causas a que abracei. Na época, fui agraciado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva na Categoria Enfrentamento à Tortura. Atualmente, represento a AMB no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT). Ou seja, continuo na jornada.

Como foi a história em que atuou como defensor público no caso de uma vítima que se tornou deficiente mental em razão de torturas sofridas por agentes do Poder Estatal?
Esse foi um dos casos mais tristes em que atuei como defensor público no combate à tortura. A vítima, um homem em plenas condições de trabalho, porteiro de uma escola, casado, pai, acabou sendo preso e, em razão de tortura, perdeu seu órgão genital. Mas não perdeu somente isso. Perdeu a esposa, o trabalho e a saúde mental. Anos depois, a vítima ingressou com uma ação indenizatória contra o Estado. O julgamento foi pela improcedência por prescrição. Neste momento, passei a atuar no processo. O recurso de apelação interposto pela Defensoria Pública foi pela impossibilidade da declaração da prescrição em razão de ser o autor absolutamente incapaz, condição a que foi submetida pelos próprios agentes estatais. Ou seja, naquele caso, o Estado estaria utilizando-se da sua própria torpeza para eximir-se da obrigação de indenizar. Foi um caso emblemático.

Quais avanços significativos no Brasil obtivemos em direitos humanos nos últimos anos?
Muitos foram os avanços. Há mais ou menos 15 anos, quando comecei a vivenciar a questão dos direitos humanos no Brasil, tudo era pioneiro. Quando estagiei perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (2001/2002), era impressionante como outros países da América Latina já acessavam o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, e no Brasil muito pouco se sabia sobre o tema. Hoje, constato a existência de uma sociedade civil cada vez mais organizada, envolvida em temas de grande relevância nacional; temos uma Secretaria de Direitos Humanos no país, que congrega uma série de conselhos e comitês de direitos, com participação paritária da sociedade civil. A AMB, inclusive, participa atualmente de três deles: Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Em termos acadêmicos, existem muitos cursos de pós-graduação stricto e lato sensu na área dos direitos humanos nas mais diversas regiões do país. Em termos de marco legal, podemos afirmar que temos um país signatário dos mais diversos tratados internacionais de direitos humanos. Entretanto, ainda há um longo caminho na formação humanista dos componentes do sistema de Justiça. Os tratados de direitos humanos, que há muito estão inseridos no ordenamento jurídico brasileiro, devem fazer parte das nossas decisões judiciais, refletindo a nossa maneira de ver os fatos, de sentir e de julgar.

A pauta do Congresso Nacional mostrou-se conservadora nessa nova legislatura, como a redução da maioridade penal. Qual a sua opinião sobre esta proposta?
Sou totalmente contra a redução da maioridade penal. Primeiro pelo seu caráter inconstitucional e inconvencional. É inconstitucional porque o artigo 228 da Constituição Federal, que assinala que os menores de 18 anos são inimputáveis, é clausula pétrea, tratando-se de garantia individual da pessoa menor de 18 anos. É inconvencional porque vai de encontro a inúmeros instrumentos internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil, que estabelecem a idade de 18 anos para determinar a responsabilidade penal das pessoas, bem como contraria a decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. É indubitável que as soluções não são simples, mas nós, juízes, não podemos receber as informações sem a devida crítica, em especial ouvindo aqueles que lidam com a questão infanto-juvenil diariamente, que, regra geral, repelem qualquer possibilidade da redução da maioridade penal.

Gostaria que o senhor falasse da atuação da AMB no Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT). Como os juízes podem ajudar nessa temática?
A criação do Comitê é mais um passo na longa jornada de luta contra a tortura no nosso país. O CNPCT é um dos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT). O colegiado é composto por 23 membros, sendo 11 representantes de órgãos federais e 12 da sociedade civil. Dentre os 12 membros da sociedade civil, encontra-se a AMB, estando representada por mim como titular e pelo juiz Ricardo Barreto (CE) como suplente.
A participação da AMB no CNPCT é um recado para a sociedade brasileira de que o juiz pessoalmente, e por meio de sua entidade de classe, tem preocupações sociais e pode contribuir para a discussão de temas importantes como o combate à tortura, até porque está na ponta do sistema, visualizando no dia a dia do seu trabalho as mais diversas violações.
Há uma iniciativa do CNJ que também pode, em muito, contribuir para a diminuição dos casos de tortura no Brasil. É o projeto “Audiência de Custódia”. Lançado recentemente pelo ministro Ricardo Lewandowski (presidente do Conselho), acaba de ser instalado em São Paulo. O projeto consiste na criação de uma estrutura a ser viabilizada pelos Tribunais de Justiça, para receber presos em flagrante e encaminhá-los à primeira audiência em até 24 horas após a prisão. Tal situação atende a uma determinação já prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos, comumente conhecida como Pacto de San José da Costa Rica.

Qual foi a sua participação no I Seminário Internacional da Associação Sindical dos Magistrados Judiciais Guineenses (Asmagui). Como foi a troca de experiências e o que a realidade local te mostrou?
Esse seminário da Asmagui contou com o apoio da União Internacional de Magistrados (UIM), da União Internacional de Juízes de Língua Portuguesa (UIJLP), e demais entidades de juízes da Comunidade de Língua Portuguesa, dentre as quais a AMB. Minha participação foi no painel “a Independência e a Afirmação do Poder Judicial enquanto Garantia dos Direitos Humanos”. Na fala, dentre as várias abordagens, deixei claro, conforme a jurisprudência da Corte IDH, que a independência de qualquer juiz pressupõe que o Estado garanta um adequado processo de nomeação; a inamovibilidade do cargo; e uma garantia contra pressões externas. Sem isso, o magistrado sempre restará vulnerável, em prejuízo do próprio jurisdicionado. Ser independente, mais do que uma garantia para o próprio juiz, é uma garantia do jurisdicionado. A troca de experiências foi excelente, contando aquele país com juízes de extraordinário nível acadêmico, muitos deles graduados e pós-graduados em universidades de Portugal, haja vista os poucos centros universitários em Guiné-Bissau e a facilidade da língua portuguesa. Entretanto, muitas foram as dificuldades apresentadas pelos juízes guineenses quanto às garantias judiciais e às condições de trabalho. Situações como uma única sala de audiência para a toda a capital Bissau ou a inimaginável realidade de ficarem 11 meses sem recebimento de salário foram alguns dos tristes relatos pelos juízes daquele país.

Quais são os grandes desafios da Justiça brasileira hoje, em relação aos direitos humanos?
O nosso grande desafio como “Justiça” é agir dentro de uma ética de alteridade. Agir na perspectiva de que o homem, na sua vertente social, tem uma relação de interação e dependência com o outro. E, mais do que concedermos o direito de igualdade, a Justiça hoje é convocada para respeitar e conhecer as diferenças. Esse é o grande desafio. E como analisar diferenças, concedendo direitos, se não saímos de nosso lugar comum, das nossas ideias preconcebidas, da nossa zona de conforto, se não estamos dispostos a perquirir a dor do outro de ser o que é, diferentemente de quem eu sou?
Vivemos um momento em que o Judiciário sofre com o aumento irrazoável de demandas, com temas cada vez mais complexos, suportando metas intermináveis. Talvez diante de tanta vulnerabilidade na qual nos encontramos, achemos um ponto de equilíbrio que significará a capacidade de enxergar a vulnerabilidade do próximo.

Muitos acreditam que defender direitos humanos trata-se apenas de defender minorias, mas isso é uma visão simplista, não? Porque é importante que magistrados tenham conhecimentos sobre o tema?
Há sempre uma tentativa de estigmatizar os direitos humanos, reduzindo-os às questões meramente policiais ou à defesa dos bandidos. Todos somos defensáveis e defendidos pelos direitos humanos, porque estamos diante da defesa da dignidade humana que há em nós. Assim, na tensão entre o princípio democrático majoritário e os direitos humanos, caberá ao magistrado – conhecedor do tema e utilizando-se da concepção kantiana de que o homem é um fim em si mesmo e não meio para obtenção de determinado fim – decidir de maneira que a dignidade da pessoa humana seja a tônica, não obstante o clamor de uma maioria, que pode destoar dos princípios constitucionais e do direito internacional dos direitos humanos. Por fim, vale lembrar uma frase do eminente sergipano ministro Carlos Ayres Britto, utilizada há 10 anos em aula inaugural proferida no curso de formação para os novos juízes do Tribunal de Justiça de Sergipe: “Se o Estado oprime, se o empregador explora, a sociedade humilha.” Cuidemos, pois, dos oprimidos, dos explorados e dos humilhados. Faz parte de nossa missão.

Curso da Escola
O juiz Edinaldo César Santos Junior será um dos coordenadores do Curso de Direitos Humanos organizado pela ENM/AMB, Escola Superior da Magistratura do Ceará e Associação Cearense dos Magistrados (ACM). A formação tem como objetivo capacitar o associado a compreender o fenômeno da proteção integral da dignidade da pessoa humana e encontrar maneiras de solucionar os litígios decorrentes das violações dos direitos humanos. O curso será realizado de 15 a 17 de julho em Fortaleza (CE).

 

Fonte: AMASE