Juíza Valeska Rolim

No Dia dos Namorados, a Associação Cearense de Magistrados traz uma entrevista com a Juíza Valeska Alves Alencar Rolim, da 10ª Vara de Família de Fortaleza e Ouvidora do Fórum Clóvis Beviláqua. A magistrada responde sobre dúvidas quanto aos diversos status de relacionamento e como o conceito de namoro, além dos demais tipos de relacionamentos à dois, se inserem no contexto jurídico. Confira à seguir:

O que configura, perante a lei, a união estável?
A união estável é um estado de fato, ou seja, não necessidade de formalização, que é configurada a partir de um relacionamento amoroso entre duas pessoas que passam a partilhar a vida a dois, como se fossem casados, cumprindo os requisitos que a lei destaca para a configuração deste instituto.

Segundo o art. 1.723 do Código Civil de 2002, a união estável é “configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

Logo, a partir da própria lei civil é possível se extrair os requisitos caracterizados para a configuração da união estável, quais sejam, a publicidade, a continuidade, durabilidade e paridade de objetivos para constituição familiar. Quanto a questão da publicidade, é importante traçar uma linha que a diferencia da ciência geral. A questão da publicidade não exige que o relacionamento seja de conhecimento de todos, mas a notoriedade exigida para se caracterizar a união estável está ligada a possibilidade de todos aqueles que estão inseridos no convívio social do
suposto casal vislumbrem a existência do referido relacionamento, ou mesmo a aparência
deste.

Logo, a publicidade vai de encontro a ocultação do relacionamento. Caso o referido relacionamento seja sonegado por um dos conviventes, restaria impossibilitada a caracterização da relação como união estável, por ferir um dos requisitos legais.

No que se refere a continuidade, tal requisito implica que na necessidade de que o relacionamento seja contínuo, ou seja, siga sem interrupções na linha do tempo. As interrupções nos relacionamentos, tais como términos e voltas sucessivas ou “tempos” de distanciamento entre os envolvidos, descaracterizam o requisito da continuidade, visto
que a união estável a que a lei buscou resguardar se mostra em um instituto sólido, com os traços de união matrimonial. Neste viés, o rompimento da continuidade poderia implicaria na descaracterização da união estável, visto ser coerente uma solidez no relacionamento, para que o mesmo possa ser classificado e reconhecido como união estável.

A durabilidade nada mais é do que o prolongamento no decorrer do tempo, onde a relação havida entre os conviventes se estende por interstício temporal suficiente à caracterização da união estável. A lei não determina uma duração de tempo mínima necessária, visto que cada caso merece uma análise minuciosamente subjetiva.
Por fim, como último requisito é a paridade de objetivo entre as partes para a constituição familiar. O objetivo da constituição familiar intrínseco ao ser humano, traz o conceito de continuidade, durabilidade, de conforto, de paz, onde o indivíduo busca preservar aquele instituto até o fim dos seus dias, com o intuito da alcançar felicidade.
Logo, para identificar a existência do objetivo de constituição familiar em um relacionamento, deve-se mensurar os esforços mútuos das partes para a perpetuação daquele relacionamento. Portanto, cumulado todos os requisitos destacados pela lei civil, é possível a configuração da união estável em um relacionamento amoroso entre duas pessoas que passam a partilhar a vida a dois.

 

Qual o objetivo dessa lei?

O Código Civil ao prever o instituto da união estável, buscou repisar, regular e dar efetividade a norma constitucional prevista no artigo 226, § 3º da nossa Carta Magna de 1988. O constituinte originário buscou resguardar o instituto da união estável, garantindo a proteção estatal, posto que este estado de fato da união estável não possuía
garantias que gerassem direito e obrigações mútuas entre os conviventes.

Ao passo em que o instituto foi resguardado constitucionalmente, com a sua regulamentação na lei civil, as pessoas que se encontram no referido estado de fato, passam a ter direito que antes eram resguardados apenas às pessoas casadas, tais como direito previdenciários, sucessórios, direitos de família, dentre outros.
Assim, entende-se que o objetivo primordial se deu por um viés garantista, para que as pessoas que estejam neste estado de fato possem ter seus direitos resguardados, mesmo quando optam por não formalizar a união através do matrimônio.

 

Como a união estável pode ser formalizada?

A união estável pode ser formalizada de três formas distintas, por Escritura Pública em cartório, por Contrato Particular ou Judicialmente. No caso de Escritura Pública em cartório, as partes interessadas devem
comparecer ao local, munidas dos devidos documentos necessários e requerer o registro da união estável existente entre elas, momento em que o oficial cartorário realizará o registro e emitirá uma declaração/certidão, atestando o registro daquilo que foi declarado pelas partes em seu comparecimento no órgão.

Em caso de Contrato Particular, ambas as partes podem assinar termo de reconhecimento da união, onde se conste a assinatura de duas testemunhas, assim como o reconhecimento de firma das assinaturas das partes declarantes, de modo que é recomendável que o procedimento seja acompanhado por um advogado, para que se evite
a existência de nulidades na redação e formalização do contrato.

Por fim, pela via judicial, a parte interessada pode ingressar com uma ação de reconhecimento de união estável, requerendo que o poder judiciário analise as provas apresentadas pera reconhecer e declarar a existência da união fática existente entre os conviventes.

 

Quais as diferenças legais entre namoro, união estável e casamento?

Legalmente, o relacionamento amoroso entre duas pessoas caracterizado como namoro não gera direitos dos quais são gerados pela união estável e o casamento, mesmo em um namoro que possua quase que a totalidade dos requisitos da união estável, como a publicidade, a continuidade e durabilidade, ainda falta a este tipo de
relacionamento o requisito subjetivo da affctio maritalis, ou seja, a paridade de objetivos para constituição familiar.
Por consta disso, considerando que o namoro não possui um objetivo claro de constituição familiar entre os envolvidos, a lei acabou não resguardando este instituto, motivo pelo qual não são gerados direitos sobre o mesmo. Logo não há efeitos patrimoniais, partilha e bens ou mesmo direitos sucessórios, não há como ser arbitrada
obrigação alimentar, assim como não há a incidência de direitos previdenciários que beneficiem o(a) namorado(a).

Diferente do namoro, na união estável a lei resguardou todos os direitos dos conviventes, de modo que, atualmente não há diferenças práticas entre os direitos contraídos pelas pessoas em união estável com aqueles em união matrimonial.

Já entre a união estável e o casamento, entende-se que a diferença está na sua formação, haja vista que o casamento é um ato necessariamente formal, com uma forma estabelecida em lei para sua contração, e a união estável poderá se formar apenas com a identificação de suas características em um estado de fato existente pelos envolvidos.
Além disso, quanto há formação há uma diferença única entre a união estável e o casamento. É que, não obstante os impedimentos matrimoniais também se aplicarem para coibir a constituição de união, a lei autorizou a reconhecimento de união entre pessoas casadas que comprovem a separação de fato ou judicial, diferente do que
ocorre no casamento, que só poderá ser celebrado no caso de o anterior ter sido finalizado
através do divórcio.

Quanto aos direitos, ambos os institutos da união estável e do casamento conferem às partes os mesmos direitos, gerando efeitos patrimoniais, tanto em partilha de bens como em direitos sucessórios, no direito de família com a instituição de obrigação alimentar, assim como há a incidência de direitos previdenciários em benefício daqueles
em união estável ou matrimonial.

 

Qual a função de um contrato de namoro?

Com o advento da pandemia do Covid-19, a necessidade do isolamento social acabou aproximando muitos os casais, queimando etapas nos relacionamentos, ao passo que diversos casais passaram a coabitar, sendo este uma das principais características da vida a dois, conquanto não seja um requisito indispensável.

Por conta disso, as pessoas acabam não sabendo ao certo qual status atribuir ao relacionamento que estão, sobretudo porque muitas vezes acreditam que o namoro que antes possuíam acabou evoluindo para uma união estável.
No entanto, como mencionado anteriormente, para que um namoro evolua ao status de união estável há a necessidade da caracterização de um requisito principal, qual seja, a affctio maritalis ou paridade de objetivos para constituição familiar.

Logo, a celebração de um contrato de namoro entre as partes serviria para que ambos externem e formalizem a inexistência do requisito subjetivo que garantiria o enquadramento da relação como união estável.
Assim, o contrato de namoro acaba assumindo a função probatória quando se trata de comprovar a ausência de um dos requisitos indispensáveis para a instituição da união estável, motivo pelo qual tal assunto vem ganhando grande repercussão.

 

Como ele pode ser formalizado e quais as limitações constitucionais deste tipo de contrato?

Em regra, como não se trata de algo previsto em lei, o contrato de namoro não necessita de uma forma especial para sua constituição. Resta necessário, portanto, que as partes exprimam suas vontades nas cláusulas contratuais, expressando a inexistência de affctio maritalis, devendo ser previsto um prazo de validade do referido contrato, já que o mesmo não pode ser vitalício, haja vista que tal durabilidade sem fim vai de encontro ao requisito o subjetivo da affctio maritalis.

Ocorre que, o contrato de namoro não possui eficácia plena e indiscutível, sobretudo quando o mesmo acaba divergindo da situação fática existente entre as partes. Isso porque, não obstante o contrato celebrado exprimir a autonomia da vontade das partes, o referido instrumento não pode se sobrepor a caracterização fática dos requisitos
da união estável, posto que são de ordem pública e por isso não podem ser afastados por
um contrato.

Considerando que a união estável é entidade familiar de fato, não basta firmar contrato de namoro para afastar a incidência dos efeitos jurídicos do companheirismo. Para que tenha efeitos, a declaração documentada deve espelhar o que existe na realidade, isto é, que as partes efetivamente vivem como namorados, já que o contrato é apenas elemento de prova da vontade dos indivíduos.

Assim, entendo que o ordenamento jurídico pátrio acaba por sobrepor a presente limitação ao referido contrato de namoro, de que o mesmo não se sobrepõe a situação fática, servindo apenas como meio probatório para comprovação da ausência do requisito subjetivo da affctio maritalis ou paridade de objetivos para constituição familiar.