Verônica Margarida Costa de Moraes
Juíza de Direito Titular da 2ª Vara da Comarca de Baturité
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Ao ler a Nota de Repúdio da Associação dos Magistrados do Estado do Amapá – AMAAP às ofensas do Ministro Gilmar Mendes aos juízes brasileiros, meu sentimento foi de orgulho. Aquelas palavras são minhas, são de juízes que Brasil afora dedicam, diariamente, suas vidas em prol da justiça.

Escolhi, por vocação, a magistratura, através de concurso público, diga-se de passagem. O sonho de ser magistrada veio antes de completa a primeira dezena de vida. Como surgiu esse sonho, desconheço, pois em minha família fui a primeira, das gerações conhecidas, a ingressar na carreira jurídica.

É possível que minha mãe seja a razão dessa escolha. Semianalfabeta, ela recolhia da pequena mercearia as folhas de jornal com que vinham embrulhadas as mercadorias e as lia para mim. Quando aprendi a ler, e sem livros à disposição, lia, frequentemente, o conteúdo de um documento pregado à parede externa da mercearia. Era o Alvará de Funcionamento, meu primeiro contato formal com as letras da lei; lição materna cuja ausência seria compreensível. Morávamos em uma comunidade ribeirinha, sem acesso à TV, informação, livros, etc., mas a lei alcança a obediência onde houver um cidadão disposto a cumpri-la.

Chegando ao Fórum, nesta manhã de sexta-feira, chamou-me a atenção uma fotografia que ladeia o bureau de meu Gabinete. Datada de julho de 1997, é um retrato de tempos difíceis, a guisa do casebre construído às margens do Rio Anapú, zona rural do Município de Igarapé Mirim/PA. O assoalho é feito de troncos de açaizeiro. O telhado de palhas sombreia instrumentos de pesca, um pescador muito querido e a filha deste, a que sonhava ser juíza.

Olhando para essa fotografia, veio-me à lembrança a aludida Nota de Repúdio. O Ministro Gilmar Mendes não só ofendeu a mim, aos juízes que honram a toga, mas também aos nossos pais, à memória dos que se foram, deixando um legado de integridade, honestidade e firmeza de caráter.

Lembrei-me, então, do torrão de açúcar.

Era uma delícia. Mas o conselho de não “mexer nas coisas dos outros” começava dentro de casa, literalmente. Certa vez, desobedeci à ordem de minha mãe, que muito irada, apanhou uma faca e ameaçou cortar-me os dedos se ousasse desobedecê-la outra vez. Nem preciso dizer que, desde então, deixei de comer torrão de açúcar; e nem tecer maiores comentários sobre a disciplina materna. O que quero dizer é que meus pais (ainda que por vezes de um jeito nada convencional, é verdade) me ensinaram a ser íntegra e honesta.

E quando vejo um Ministro da mais alta Corte do país dizer que “cada juiz do Brasil faz seu pequeno assalto”, que “Juízes e Membros do Ministério Público usam a Lei da Ficha Limpa para chantagear políticos”, é revoltante. É malferir a honra de quem exerce a magistratura com amor, dedicação e competência; de quem não se vale da mídia para prestar um desserviço à nação.

A paixão pelos holofotes traz à lume a busca desmesurada por reconhecimento social, e bem ainda pungente incontinência verbal, na expressão inserta na bem lançada Nota de Repúdio e que me lembra da lição filosófica de Voltaire, segundo a qual os sábios falam porque têm alguma coisa para explicar; os tolos, porque gostam de ouvir a própria voz.