Procuram-se: Mães para ninar

Por Verônica Margarida Costa de Moraes
Juíza de Direito Titular da Comarca de Mulungu

Sob o título “Cicatrizes Profundas”, a revista Revista Mente & Cérebro, edição de Junho/2015, publicou artigo elaborado por Charles Zeanah Jr., professor de psiquiatria e pediatria clínica da Universidade de Tulane, Nathan Fox, neurocientista da Universidade de Maryland e Charles Nelson, neurocientista em Harvard, resultado de uma pesquisa, iniciada em 2000, com crianças abandonadas pelos pais biológicos, na Romênia.

O ineditismo e a precisão experimental da pesquisa deram-se em razão do acompanhamento psicossocial, por mais de uma década, de três grupos de crianças de 0 a 3 anos de vida. Um deles foi formado por 136 crianças institucionalizadas, metade das quais permaneceu nos abrigos, sendo a outra metade enviada para lares de acolhimento e um terceiro grupo formado por crianças que viviam com suas famílias, na capital romena.

O estudo comparativo revelou que as crianças institucionalizadas apresentaram menores índices de QI, atrasos no desenvolvimento da linguagem, diminuta atividade cerebral, além de dificuldades em criar vínculos emocionais, revelando o “impacto devastador sobre a mente e o cérebro da experiência de passar os dois primeiros anos de vida dentro dos limites impessoais de uma instituição”. Para os pesquisadores, “as crianças romenas são a melhor evidência até agora de que os dois anos iniciais da vida constituem período crítico em que o contato emocional e físico é imprescindível para o bom desenvolvimento”.

Deveras, os abrigos, por mais bem estruturados que sejam, jamais proporcionarão às crianças o que lhes é essencial. Não há como um tratamento impessoal oferecer a elas interação constante, atenção individualizada e o que é mais salutar e tão necessário à formação da personalidade e ao desenvolvimento cerebral: Amor.

A ausência da figura de apego, por exemplo, acarreta situações dolorosas, como é o caso dos bebês. Na falta do colo materno, o pequenino corpo projeta movimentos de embalo, se “auto ninando”.

Os impactos de um ambiente sem laços afetivos seguros, no desenvolvimento de crianças institucionalizadas, são dramáticos. A apatia, o semblante tristonho, o olhar distante ou ávido por realidades nunca ou pouco vivenciadas, tão singelos e insignificantes: A cor da roupa, o toque, o batom, a saia de “plástico”, em fim, a vida lá fora. Há um mundo a ser descoberto, sensações ainda não experimentadas e que, para muitas, jamais o serão.

Na aridez dos abrigos, a criança busca outras saídas, criando um mundo próprio, aonde o ideal, embora dele não faça parte, existe em algum lugar. Daí o porquê das mãos estendidas, do apelo insistente e choroso pelo colo do visitante, do debruçar sobre o cercado de madeira, tentando “fugir” a uma realidade que não lhes pertence.

Na obra “Teoria dos Valores Jurídicos”, o professor de Hermenêutica Jurídica da Universidade Federal do Ceará, Glauco Barreira Magalhães Filho, de forma inteligente e precisa, lembra que a “criança duplica o mundo. Para ela, existe um mundo ideal, aonde o bem sempre vence o mal, ao lado do mundo visível e empírico. Este último é árido, enquanto o primeiro parece mais real e permanente”.

Há um único e ideal lugar para as crianças: A família. É certo que o acolhimento institucional funciona como medida indispensável à proteção de crianças e adolescentes, em situação de risco, mas como diz a letra da lei, é provisório e excepcional.

Outros caminhos podem ser pensados, construídos, aperfeiçoados. Um passo adiante é sempre possível. Há uma dívida com essas crianças que nunca será quitada pela Família, pela Sociedade e pelo Estado. De algum modo, falhamos com elas.

A esperança está em saber que a rota dos erros pode ser corrigida.

Quiçá a família reencontre os rumos perdidos, resgate valores esquecidos e seja, de fato, o que nunca deveria ter deixado de ser: Um referencial de proteção e segurança.

Segundo Relatório de Inspeções realizadas, neste ano, pelo Ministério Público, nos abrigos de Fortaleza, 71,43% das crianças e adolescentes foram vítimas de violência doméstica e 90,48% foram vitimados pela negligência dos pais ou responsáveis.

A lida cotidiana com casos tais parece nos conduzir a um mundo surreal. É difícil a “digestão”. Vivenciar realidades tão duras e cruéis transcende o “mundo dos autos”.

Ainda segundo o referido Relatório, 90,45% das crianças ou adolescentes são filhos de pais alcoolistas ou dependentes de drogas, o que demanda um maior esforço estatal, no tratamento da saúde e na atenção aos usuários de drogas.

A propósito do título deste artigo, no Abrigo Tia Júlia, há 23 crianças e adolescentes aptos à adoção. Dizer o perfil, penso ser dispensável, se vencidos os preconceitos e ultrapassadas as barreiras da invisibilidade e da indiferença. Martin Luther King estava certo ao dizer que “o que me assusta não são as ações e os gritos das pessoas más, mas a indiferença e o silêncio das pessoas boas”.